A Educação no Plano Constitucional

André Lucenti Estevam
Jonathas Lima Soler
Raphael Dias Santana
Wynn Bullock, Child on Forest Road, 1958

Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução Histórica. 2.1. Constituição de 1824. 2.2. Constituição de 1891. 2.3. Constituição de 1934. 2.4. Constituição de 1937. 2.5 Constituição de 1946. 2.6. Constituição de 1967. 3. Linhas Gerais da Educação na Constituição de 1988. 3.1. Uma abordagem no nível da decidibilidade. 4. A Perene Reinterpretação da Constituição. 5. Conclusão.

 

  1. Introdução

A evolução do direito à educação no Brasil acompanha a evolução do Estado e da sociedade brasileira. Os conceitos que guiam a educação brasileira como política de Estado foram gradualmente transformados, editados e ampliados enquanto o Brasil evoluía de um Império para uma República e de uma Oligarquia para a Democracia tal qual se faz estruturada desde 1988.

Entender o processo de evolução constitucional ao longo da história proporciona uma perspectiva das conquistas de ponto a ponto pelas quais a educação passou no Brasil e uma visão mais ampla e enriquecida sobre a configuração atual da disciplina jurídica do tema da educação.

A Constituição Federal de 1988 não consiste em um mero texto jurídico-normativo que define a organização jurídica do Estado brasileiro, mas contempla uma série de orientações vinculantes e posições políticas a respeito dos rumos que o país deve tomar – inclusive sobre a educação. Incluir ou não o tema da educação na disciplina constitucional é uma opção democrática de um povo que indica a maior ou menor importância que se confere a tal tema (assim como o nível de detalhamento e de garantias que o constituinte decide atribuir à educação). Nem todos os países preveem em suas constituições direitos e garantias, em favor dos cidadãos, em matéria de educação; ou, ainda, nem sempre o fizeram, da mesma maneira, ao longo do tempo.

A comparação entre a disciplina jurídica da educação na Constituição de 1988, de um lado, e a disciplina dedicada a tal tema nas constituições brasileiras anteriores, de outro lado, permite vislumbrar como chegamos à atual caracterização dos direitos, deveres e garantias no texto constitucional (tal como interpretado atualmente). Nessas diferenças, vemos a afirmação histórica do direito à educação.

Conforme veremos, em matéria de educação, a Constituição de 1988 efetivamente determina orientações que devem ser observadas (i) pelos legisladores federal, estadual e municipal infraconstitucional na elaboração de normas jurídicas e políticas públicas, assim como pelas constituições estaduais; (ii) pelos agentes públicos do Poder Executivo na implementação de tais políticas e normas, na proposição de novas políticas e normas, bem como na regulamentação de normas gerais que exigem detalhamento; (iii) pelos órgãos jurisdicionais que são chamados a decidirem os conflitos relacionados à educação; e (iv) pelos cidadãos e agentes que atuam na educação. A integração contemporânea entre as normas jurídicas e as interpretações que se dão a elas forma um modelo jurídico sobre a educação, que se transforma gradativamente ao longo do tempo.

Como guia de políticas públicas e como fonte primeira do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição contempla ideais que devem ser interpretados e reinterpretados, de modo a adequá-la às circunstâncias do tempo presente. Essa constante interpretação e reinterpretação frequentemente promove o embate de ideias divergentes na comunidade aberta de intérpretes, gera incertezas ao longo das discussões e produz, temporariamente, certo sentido de estabilização (o qual perdurará até que as circunstâncias fáticas, políticas, jurídicas, econômicas, sociais se transformem e comprometam o eixo dessa dobradiça articulada pela interpretação entre facticidade e normatividade).

Com vistas a essas breves considerações, faremos neste ensaio um breve retrospecto da disciplina constitucional sobre o tema da educação desde a primeira Constituição brasileira. Na sequência, apresentaremos uma análise dogmático-estrutural da ordenação da educação na Constituição de 1988 e indicaremos, em linhas gerais, com base em casos concretos, como a interpretação da Constituição se atualiza no momento prático-judicativo em que os conflitos emergem.

 

  1. Evolução Histórica

2.1     Constituição de 1824

A primeira Constituição brasileira foi promulgada e outorgada em 1824, logo após a independência do Brasil em relação a Portugal. Trata-se da Constituição que teve mais extenso período de vigência até hoje – perdurou todo o período imperial, até 1891. Diferentemente da atual Constituição brasileira, a carta magna imperial era bem mais sucinta – aproximadamente dez vezes menor que o atual texto constitucional. Ou seja, menos matérias foram tratadas pela Constituição de 1824 e, de modo geral, as matérias disciplinadas por essa Constituição o foram de modo mais sintético.

Em seu artigo 179, a Constituição imperial determinava que a todos os cidadãos livres (excluídos desse artigo os escravos e libertos) deveriam ter certas garantias e direitos civis, inclusive o de instrução primária gratuita. Os incisos XXXII e no XXXIII determinavam (sic):

“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

[…]

XXXII. A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos.

XXXIII. Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes.”

Posteriormente, a Constituição imperial foi alterada pela Lei n. 16, de 12 de agosto de 1834, que passou a prever a competência das assembleias legislativas provinciais para legislar sobre ensino público, nos seguintes termos:

“Art. 10. Compete ás mesmas Assembléas [provinciais] legislar:

[…]

  • 2º Sobre instrucção publica e estabelecimentos proprios a promovel-a, não comprehendendo as faculdades de Medicina, os Cursos Juridicos, Academias actualmente existentes e outros quaesquer estabelecimentos de instrucção que para o futuro forem creados por lei geral (…)”.

Ainda assim, a educação não era um direito de todos, já que tal Constituição ainda segregava a sociedade entre libertos, ingênuos, escravos e estrangeiros, bem como determinava quais eram os direitos de cada porção da sociedade. Vale ressaltar, ainda, que tais direitos, em matéria de educação, inicialmente, não eram concedidos às mulheres, que conquistaram o direito a estudar em instituições primárias em 1827 (Lei de 15 de outubro de 1827), três anos após a promulgação da Constituição imperial, e continuaram proibidas de frequentar o ensino superior até 1879 (Decreto n. 7.247, de 19 de abril de 1879).

Não havia, portanto, no plano constitucional, durante o período imperial do Brasil, uma política educacional voltada ao interesse nacional que visasse proporcionar acesso amplo da população ao ensino. A situação da educação era extremamente precária, como ressaltava enfaticamente Ruy Barbosa, em 1882, em obra sobre a Reforma do Ensino Primário, dirigindo-se à Comissão de Instrução Pública da Câmara dos Deputados:

“(…) Mas a verdade — e a vossa comissão quer ser muito explícita a seu respeito, desagrade a quem desagradar — é que o ensino público está à orla do limite possível a uma nação que se presume livre e civilizada ; é que há decadência, em vez de progresso; é que somos um povo de analfabetos, e que a massa deles, se decresce, é numa proporção desesperadoramente lenta; é que a instrução acadêmica está infinitamente longe do nivel científico desta idade; é que a instrução secundária oferece ao ensino superior uma mocidade cada vez menos preparada para o receber ; é que a instrução popular, na Corte como nas províncias, não passa de um desideratum; é que há sobeja matéria para nos enchermos de vergonha, e empregarmos heróicos esforços por uma réhabilitação, em bem da qual, se não quisermos deixar em dúvida a nossa capacidade mental ou os nossos brios, cumpre não recuar ante sacrifício nenhum; não só porque, de todos os sacrifícios possíveis, não haveria um que não significasse uma despesa proximamente reprodutiva, como porque trata-se aqui do nome nacional num sentido mais rigoroso, mais sério, mais absoluto do que o que se defende nas guerras à custa de dezenas de milhares de vidas humanas roubadas ao trabalho e centenas de milhões arrancados, sem compensação, aos mais esterilizadores de todos os impostos (…)”[1].

Nos dois volumes que Ruy Barbosa elaborou a propósito da reforma do ensino primário, encontra-se uma radiografia da situação deplorável em que a educação do país se encontrava e um chamamento à atuação do Poder Público. Essa atuação abrangia tanto (i) a efetiva realização de investimentos na educação; quanto (ii) o controle do Estado sobre o ensino (incluindo métodos e programas). Sobre a primeira forma de atuação, ele escrevia:

“(…) Uma reforma radical do ensino público é a primeira de todas as necessidades da pátria, amesquinhada pelo desprezo da cultura científica e pela insigne deseducação do povo. Sob esta invocação conservadores e liberais, no Brasil, podem reunir-se em um terreno neutro: o de uma reforma que não transija com a rotina. Num país onde o ensino não existe, quem disser que é ‘conservador em matéria de ensino’ volteia as costas ao futuro, e desposa os interesses da ignorância. É preciso criar tudo; porquanto o que aí está, salvo raríssimas exceções, e quasi todas no ensino superior, constitue uma perfeita humilhação nacional. Mas essa reorganização vem-nos custar duros sacrifícios, sacrifícios muito penosos a um orçamento onde o deficit se aninhou, e prolífica”[2].

Analisando e elogiando o sistema norte-americano de organização do ensino, Ruy Barbosa reconhecia que a situação orçamentária do Brasil era precária e se afigurava árdua a destinação de recursos para a educação, mas destacava que os investimentos em educação eram os mais “fecundos” possíveis.

Sobre o segundo tema – o controle efetivo da educação pelo Estado –, realçando a influência positivista que incidiria, posteriormente, na Primeira República, Ruy Barbosa assinalava:

“(…) Para que a filosofia não destoe deste nome, há de começar por se conhecer a si mesma, por confessar a sua falibilidade, por buscar na consignação dos próprios erros a autoridade moral precisa para censurar os contrários ; há de evitar a tentação de erigir em pontífices os seus chefes de escola, e não jurar indistintamente na palavra dos seus Aristóteles; e nós, que vemos defendida, no grêmio do positivismo, pelo eminente continuador de Comte, a interferência do Estado na instrução nacional, não podemos hesitar um instante em pedir a reconstituição do organismo, que o deve habilitar a satisfazer eficazmente essa missão civilizadora. Daí o firmarmos o direito supremo do Estado à colação dos graus, direito que aliás o próprio Comte lhe reservava. Pensamos, com o preclaro sábio positivista, que. ‘seja qual for o estado da questão, ele deve conservar a colação dos graus’ (…).

(…) Ora. quem quer que não perder de vista esse critério, não desconhecerá a evidência da incapacidade atual do indivíduo e da associação, entre as sociedades mais adiantadas, para substituir, na educação do povo, a ação ampla, sistematizada, múltipla do Estado; não contestará a necessidade de organizar rigorosamente nas condições mais perfeitas de excelência e eficácia, de atividade e ciência, o ensino oficial (…).

(…) O que sustento, é que o progresso e o melhoramento não se podem efetuar pela iniciativa da sociedade inteira; que hão de ser obra de alguns indivíduos, assaz esclarecidos para avaliar a necessidade, assaz potentes para vencer a resistência passiva de uma imensa maioria, que ignora ainda em que direção se há de encaminhar. Organizar-se por si mesmo um ensino liberal é impossível; cumpre, pois, organizá-lo (…)”[3].

As observações antecedentes são importantes para se registrar (i) como era pequena a intervenção do Estado na educação brasileira até então, (ii) a lamentação histórica sobre o estado miserável da educação no país (bem como sobre o nível de letramento da população); e (iii) como começou a ser gestado o plano de atuação do Estado brasileiro na educação (a começar pelo reconhecimento de que o processo educacional não progrediria espontaneamente, sem atuação estatal).

2.1     Constituição de 1891

Na Primeira República houve uma tentativa de federalizar a educação básica. Até então, a Constituição separava as funções de cada ente federado e, desse modo, competia aos estados legislar sobre a educação primária e secundária, enquanto à União competia legislar sobre o ensino superior.

A Constituição da Primeira República rompeu com o modelo de Estado confessional, mediante a introdução da obrigatoriedade do ensino público laico, tal qual disposto no parágrafo sexto do artigo 72 da Constituição de 1891. Uma mudança significativa, já que a instrução imperial tinha sido majoritariamente fornecida pela Igreja Católica. Tal dispositivo previa, in verbis:

“Art.72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:

(…)

  • 6º Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos (…).

O Projeto do Governo Provisório, de modo mais amplo, previa no item 5º do art. 62: “o ensino será leigo e livre em todos os graus, e gratuito no primário”. A Comissão de Juristas, por seu turno, adicionalmente, propôs o enunciado normativo segundo o qual “todos podem livremente aprender, e ensinar, ou fundar instituições de ensino”. Essas propostas, entretanto, não foram acolhidas na versão final do texto constitucional.

O art. 35 da primeira Constituição republicana, por seu turno, previa ainda uma competência não privativa do Congresso para promover as artes, as ciências e as letras, além do poder de criar instituições de ensino superior e secundário:

Art. 35. Incumbe, outrosim, ao Congresso mas não privativamente:

1º Velar na guarda da Constituição e das leis, e providenciar sobre as necessidades de caracter federal;

2º Animar, no paiz, o desenvolvimento das letras, artes e sciencias, bem como a immigração, a agricultura, a industria e o commercio, sem privilegios que tolham a acção dos governos locaes;

3º Crear instituições de ensino superior e secundario nos Estados; 4o Prover á instrucção secundaria no Districto Federal.

Ao mesmo tempo em que o Poder Público não se empenhava, ativamente, para imprimir melhoras na educação pública, é notável que, sob a Constituição de 1891, somente possuíam direito de voto os homens adultos alfabetizados. Também se deve observar que, a exemplo do que ocorria no sistema jurídico do Império, a parte mais substancial da disciplina jurídica da educação durante a Primeira República se encontrava no nível infraconstitucional. Nesse período, vigia o Decreto n. 981, de 08 de novembro de 1890, editado pelo Governo Provisório chefiado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, que estabelecia regras básicas de organização da educação no Brasil, mas sem a direção de princípios gerais constitucionais assemelhados aos que hoje estão presentes na Constituição de 1988. Posta a questão de outro modo, não havia, na Constituição da República Velha, direito do cidadão à educação contraposto ao dever do Estado de prover serviço educacional; como consequência natural, o texto constitucional não previa outras formas de diminuição das desigualdades relacionadas à educação, pois faltava o direito mínimo.

2.3     Constituição de 1934

A afirmação de direitos fundamentais chamados “sociais” se inicia, sobretudo, na primeira metade do século XX. Trata-se de direitos – como direito à educação, à saúde, à cultura, a habitação, ao lazer, à segurança e ao trabalho – que ultrapassam as garantias da primeira geração de direitos humanos, que lançava âncoras nas liberdades individuais e civis, como direito de propriedade, liberdade de expressão e liberdade religiosa, entre outras.

No Brasil sob Vargas, houve um avanço, no plano constitucional, da afirmação dos direitos sociais, sobretudo, mas não somente, de natureza trabalhista. Do ponto de vista da educação, houve também um avanço ao se prever, pela primeira vez, no plano constitucional, o direito à educação. O art. 149 da Constituição de 1934 estabelecia:

“Art. 149 – A educação é direito de todos e deve ser ministrada, pela família e pelos Poderes Públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no País, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana.”

Apesar da declaração da existência desse direito, a Constituição de 1934 não previa sanções ou remédios para a hipótese de inobservância desse direito. Por outras palavras, se não houvesse escola disponível ou, havendo escola, mas com lotação completa, o cidadão não possuía meios de fazer valer o direito à educação enunciado constitucionalmente. Essa é, aliás, a crítica que Pontes de Miranda fazia em seus comentários à Constituição de 1934:

“(…) O art. 149 fala do ‘direito de todos’ que é a educação. Mas (…) não criou o direito público subjectivo à educação, o verdadeiro ‘Direito à educação, pelo qual nos batêramos. O direito à educação é um direito novo. Robespierre e Hegel podem, nos dois grandes povos continentais da Europa, representá-lo. O que até hoje se fêz, o que fizeram 1789 e as datas posterior, de modo nenhum corresponde ao direito à escola. Uma coisa é dizer-se que haverá escolas públicas e outra que todos terão escola pública.

Há direitos declarados só verbalmente e de difícil reconhecimento, e direitos subjectivos, accionáveis. A distinção é essencial, para que se compreenda o nosso comentário ao art. 149. A transformação social mais profunda que se conhece é a da passagem de certos actos espontâneos e, portanto, ocasionais, à categoria de direitos. Infelizmente, o Estado moderno, o Estado constitucional, deixou sem sancção certos direitos declarados. (…) Onde há a escola pública o aluno se matricula gratuitamente. Onde não há, ou onde a lotação já se completou, ficam sem escola os indivíduos em idade escolar. (…) Ao lado do direito à educação deve estar a obrigação de educação. São correlativos (…)[4]”.

Além de enunciar nominalmente o direito à educação, a Constituição de 1934 previu, ainda, a estrutura elementar de organização da educação no país, estabelecendo, entre outras regras e princípios: (i) liberdade de cátedra; (ii) liberdade de frequência no ensino religioso; (iii) isenção de tributos em favor dos estabelecimentos de ensino particulares; (iv) competência da União para elaborar um plano nacional de educação (o qual deveria contemplar, ainda, gratuidade do ensino primário integral e tendência à gratuidade do ensino ulterior ao primário); (v) competência dos Estados e do Distrito Federal para organizar e manter seus próprios sistemas de educação (observadas as orientações gerais da União); (vi) aplicação, (a) pela União e pelos Municípios, de, no mínimo, dez por cento de suas rendas para a manutenção e desenvolvimento de seus sistemas educacionais; e (b) pelos Estados e Distrito Federal, de, no mínimo, vinte por cento de sua receita para a manutenção e desenvolvimento de seus sistemas educacionais; e (vii) obrigação de realização de concursos públicos para o provimento de cargos do magistério oficial, sendo asseguradas, ainda, a inamovibilidade e a vitaliciedade dos professores nomeados.

Apesar de ter promovido alguns avanços, a Constituição de 1934 vigorou por pouco tempo e foi suspensa pela ruptura ditatorial trazida pelo Estado Novo[5].

2.4     Constituição de 1937

A Constituição do Estado Novo remodelou os direitos fundamentais substancialmente em comparação com a Constituição anterior, incluindo alterações nas liberdades democráticas e no tema da educação. O texto constitucional de 1937 teve como principal autor Francisco Campos, que foi, também, o primeiro titular do Ministério da Educação e Saúde (MES), criado por Getúlio Vargas em 1930 para enfrentar de modo mais objetivo os problemas educacionais e de saúde pública que assolavam o país.

Em primeiro lugar, o dispositivo normativo que enunciava o direito à educação foi remodelado. Sua primeira referência aparece em um título da Constituição dedicado à família. O art. 125 da Constituição de 1937 determinava:

Art 125 – A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular. (grifos nossos)

A linguagem do art. 125 é peculiar e indica uma tentativa de fuga da imputação clara de um dever ao Estado; o dispositivo poderia ter estabelecido que o Estado possui o dever de prestar educação a todos, mas, ao contrário, previu, em linguagem negativa, que “o Estado não será estranho a esse dever”. Não ser estranho ao dever não significa, todavia, ser o titular da obrigação. Similarmente, o dispositivo não prevê que o Estado deverá prestar os serviços de educação; diversamente, o dispositivo prevê uma espécie de obrigação de melhores esforços do Estado para “colaborar para facilitar” a execução desses serviços. Nota-se, assim, um esforço retórico para diminuir o encargo do Estado em relação ao direito à educação.

Complementarmente, os arts. 128, 129 e 130, ao mesmo tempo em que previam o ensino primário obrigatório e gratuito, relacionavam a atuação do Estado em matéria de educação com a necessidade econômico-financeira das famílias – e, dessa forma, mitigavam o dever do Estado nessa matéria. Tais dispositivos estabeleciam, in verbis:

Art 128 – A arte, a ciência e o ensino são livres à iniciativa individual e a de associações ou pessoas coletivas públicas e particulares.

É dever do Estado contribuir, direta e indiretamente, para o estímulo e desenvolvimento de umas e de outro, favorecendo ou fundando instituições artísticas, científicas e de ensino. (grifos nossos)

Art 129 – A infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários à educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar, pela fundação de instituições públicas de ensino em todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais.

O ensino pré-vocacional profissional destinado às classes menos favorecidas é em matéria de educação o primeiro dever de Estado. Cumpre-lhe dar execução a esse dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos Estados, dos Municípios e dos indivíduos ou associações particulares e profissionais.

É dever das indústrias e dos sindicatos econômicos criar, na esfera da sua especialidade, escolas de aprendizes, destinadas aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei regulará o cumprimento desse dever e os poderes que caberão ao Estado, sobre essas escolas, bem como os auxílios, facilidades e subsídios a lhes serem concedidos pelo Poder Público.

Art 130 – O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim, por ocasião da matrícula, será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar.

Esse modelo de ensino previsto pela Constituição de 1937 tinha por propósito vincular estreitamente a educação com “valores cívicos e morais”, conforme sinaliza o art. 131 dessa Constituição, in verbis:

Art 131 – A educação física, o ensino cívico e o de trabalhos manuais serão obrigatórios em todas as escolas primárias, normais e secundárias, não podendo nenhuma escola de qualquer desses graus ser autorizada ou reconhecida sem que satisfaça aquela exigência. (grifo nosso)

Como se nota, consoante antecipamos na introdução a este ensaio, o modelo de educação plasmado no plano constitucional está intimamente ligado ao modelo de Estado vigente: no Estado Novo, observa-se o intento totalitário do Estado em controlar a educação, vinculá-la a valores cívicos e morais, engajar as indústrias e sindicatos na promoção da educação profissionalizante e, ao mesmo tempo, mitigar o ônus econômico-financeiro do Estado na tarefa de prover educação à população.

Com o fim do Governo Vargas e do Estado Novo e com a redemocratização do país, cairia a Constituição de 1937 e um novo texto constitucional seria aprovado, alterando novamente a disciplina normativa da educação.

2.5     Constituição de 1946

Na Quarta República, com a restauração do modelo democrático, a Constituição volta a considerar a educação como um direito de todos. Ela retoma certos valores da Constituição de 1934 e recupera o pacto federativo no sistema educacional, dando competência legislativa à União, para elaborar as diretrizes do plano nacional, e aos Estados, de modo residual.

Na Constituição de 1946, nota-se, já, o caráter programático de certas normas dedicadas ao tema da educação (algo que continuaria ocorrendo em textos constitucionais posteriores). Os arts. 166 e 167, por exemplo, determinavam:

Art 166 – A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana.

Art 167 – O ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos Poderes Públicos e é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem.

Mesmo em uma análise puramente jurídica, devemos salientar que um mínimo de eficácia é condição para a validade de uma norma jurídica, de modo geral. Esse descompasso que existia – e, em certa extensão, continua existindo – entre o texto constitucional e a realidade fática era duramente criticada por Pontes de Miranda, ao comentar a Constituição de 1946. Escrevia Pontes de Miranda a respeito do art. 166 dessa Constituição:

“A ingenuidade ou a indiferença ao conteúdo dos enunciados com que os legisladores constituintes lançam a regra ‘A educação é direito de todos’ lembra-nos aquela Constituição espanhola em que se decretava que todos ‘os Espanhóis seriam’, desde aquêle momento, ‘buenos’. A educação sòmente pode ser direito de todos se há escolas em número suficiente e se ninguém é excluído delas, portanto se há direito público subjetivo à educação e o Estado pode e tem de entregar a prestação educacional. Fora daí, é iludir o povo com artigos de Constituição ou de leis”[6].

Poucas vezes pode o jurista, de seu gabinete, atestar com tanta veemência a distância entre a norma jurídica posta e a realidade social, tal como fazia Pontes de Miranda a propósito do direito à educação nas constituições brasileiras desde a década de 1930 até fins dos anos de 1960. Ou seja, ainda que houvesse o enunciado constitucional prevendo liberdade de ensino e direito à educação, a escolarização da população ainda era precária e, importantemente, não havia mecanismos jurídicos que assegurassem a efetividade do direito à educação.

Em complemento às normas básicas dos arts. 166 e 167, o art. 168 da Constituição de 1946 determinava:

“Art 168 – A legislação do ensino adotará os seguintes princípios:

I – o ensino primário é obrigatório e só será dado na língua nacional;

II – o ensino primário oficial é gratuito para todos; o ensino oficial ulterior ao primário sê-lo-á para quantos provarem falta ou insuficiência de recursos;

III – as empresas industriais, comerciais e agrícolas, em que trabalhem mais de cem pessoas, são obrigadas a manter ensino primário gratuito para os seus servidores e os filhos destes;

IV – as empresas industrias e comerciais são obrigadas a ministrar, em cooperação, aprendizagem aos seus trabalhadores menores, pela forma que a lei estabelecer, respeitados os direitos dos professores;

V – o ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável;

VI – para o provimento das cátedras, no ensino secundário oficial e no superior oficial ou livre, exigir-se-á concurso de títulos e provas. Aos professores, admitidos por concurso de títulos e provas, será assegurada a vitaliciedade;

VII – é garantida a liberdade de cátedra.”

Como se nota, o Estado não assumiu a obrigação de universalizar o ensino público, de modo a garantir escolas e vagas a todos; quando o ensino primário público estivesse disponível, ele seria obrigatório e gratuito. Para o ensino ulterior ao primário, também não havia obrigatoriedade ou garantia de gratuidade. Também aqui se faz sentir a lição de Pontes de Miranda:

“Técnicamente, o texto constitucional deveria ter ido ao direito público subjetivo, provido de ação e remédio jurídico processual, constitucionalmente caracterizados, com os pressupostos em termos claros, e ao direito dos menores em idade escolar ao material necessário para a sua educação primária e profissional”[7].

Mais uma vez, o constituinte brasileiro perdeu a oportunidade de iniciar a transformação da educação no país por meio de normas que efetivamente assegurassem o comprometimento do Estado com o avanço real da educação.

2.6     Constituição de 1967

A Constituição de 1967, outorgada durante a ditadura militar, foi mais uma Constituição que não propulsionava a educação e não obrigava o Estado a promover transformações efetivas no ensino.

O núcleo do texto original da Constituição de 1967, em matéria de educação, encontrava-se no art. 168, o qual reproduzimos abaixo:

Art 168 – A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola; assegurada a igualdade de oportunidade, deve inspirar-se no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e de solidariedade humana.

  • 1º – O ensino será ministrado nos diferentes graus pelos Poderes Públicos.
  • 2º – Respeitadas as disposições legais, o ensino é livre à Iniciativa particular, a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive bolsas de estudo.
  • 3º – A legislação do ensino adotará os seguintes princípios e normas:

I – o ensino primário somente será ministrado na língua nacional;

II – o ensino dos sete aos quatorze anos è obrigatório para todos e gratuito nos estabelecimentos primários oficiais;

III – o ensino oficial ulterior ao primário será, igualmente, gratuito para quantos, demonstrando efetivo aproveitamento, provarem falta ou insuficiência de recursos. Sempre que possível, o Poder Público substituirá o regime de gratuidade pelo de concessão de bolsas de estudo, exigido o posterior reembolso no caso de ensino de grau superior;

IV – o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio.

V – o provimento dos cargos iniciais e finais das carreiras do magistério de grau médio e superior será feito, sempre, mediante prova de habilitação, consistindo em concurso público de provas e títulos quando se tratar de ensino oficial;

VI – é garantida a liberdade de cátedra.

A abordagem do direito à educação, no texto original de 1967, continuava colocando a tônica na liberdade de ensino, mas sem a imputação clara de deveres ao Estado. Essa abordagem é ainda reforçada pela previsão de gradativa substituição do regime de gratuidade do ensino ulterior ao primário.

Substituir o sistema da educação gratuita por um sistema de voucher de ensino (bolsas para mais pobres) no ensino particular, e o ensino superior por um crédito ao estudante – que deveria reembolsar a instituição pelos seus estudos –, dão claros sinais do retrocesso em relação ao período anterior e ao esvaziamento da ideia de educação como um direito de todos.

As normas da Constituição de 1967 sobre educação seriam, todavia, significativamente reformuladas com a Emenda Constitucional n. 1 de 1969. Os artigos centrais sobre educação, a partir de 1969, passaram a ser os arts. 176-180. Novamente, no bojo de uma ditadura, buscava-se associar a educação com valores morais e cívicos e a unidade nacional; de outro lado, o Estado não somente não se comprometia a cumprir prestações educacionais que avançassem no ensino, mas também buscava se liberar da obrigação de gratuidade do ensino. O art. 176 da Constituição de 1967, após a Emenda Constitucional n. 1, estabelecia:

Art. 176. A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será dada no lar e na escola.

  • 1º O ensino será ministrado nos diferentes graus pelos Podêres Públicos.
  • 2º Respeitadas as disposições legais, o ensino é livre à iniciativa particular, a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Podêres Públicos, inclusive mediante bôlsas de estudos.
  • 3º A legislação do ensino adotará os seguintes princípios e normas:

I – o ensino primário somente será ministrado na língua nacional;

II – o ensino primário é obrigatório para todos, dos sete aos quatorze anos, e gratuito nos estabelecimentos oficiais;

III – o ensino público será igualmente gratuito para quantos, no nível médio e no superior, demonstrarem efetivo aproveitamento e provarem falta ou insuficiência de recursos;

IV – o Poder Público substituirá, gradativamente, o regime de gratuidade no ensino médio e no superior pelo sistema de concessão de bôlsas de estudos, mediante restituição, que a lei regulará;

V – o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio;

VI – o provimento dos cargos iniciais e finais das carreiras do magistério de grau médio e superior dependerá, sempre, de prova de habilitação, que consistirá em concurso público de provas e títulos, quando se tratar de ensino oficial; e

VII – a liberdade de comunicação de conhecimentos no exercício do magistério, ressalvado o disposto no artigo 154.

Entre os valores que inspiram a educação na Constituição de 1967, além da liberdade e da solidariedade, estava a unidade nacional. No dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “num país como o Brasil, de grande extensão territorial e de grande dessemelhança de condições regionais, é realmente importante que a educação procure solidificar a unidade entre o povo das diferentes zonas do território nacional. Convém, por isso, que se infunda o sentimento de unidade, a idéia de que o Brasil é um só”[8].

De modo mais enfático do que na redação de 1967, a Emenda de 1969 deixava claro que o Estado brasileiro previa substituir, gradativamente, o regime de gratuidade no ensino médio e no superior. Desse modo, seria gratuito e obrigatório apenas o ensino primário ministrado dos sete aos catorze anos de idade.

Embora, nominalmente, o texto constitucional de 1969 previsse liberdade de ensino, tal liberdade estava explicitamente subordinada à limitação do art. 154, cujo caput dispunha:

Art. 154. O abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime democrático ou de corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos, a qual será declarada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador Geral da República, sem prejuízo da ação cível ou penal que couber, assegurada ao paciente ampla defesa.

Comentando o inciso VII ao art. 176, Manoel Gonçalves Ferreira Filho escrevia que “o Estado deve zelar para que no ensino não seja sabotada a democracia pela desmoralização de suas instituições, de seus valores ou de seu princípio. (…) O abuso da liberdade acadêmica deve ser punido na forma prevista pelo art. 154 da Constituição”[9].

Quando o texto constitucional de 1969 imputava dever ao Estado em matéria de educação e cultura, não lhe fazia acompanhar sanções, como se depreende, por exemplo, do art. 180:

Art. 180. O amparo à cultura é dever do Estado.

Parágrafo único. Ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas.

Fosse com o texto de 1967, fosse com o texto de 1969, a Constituição do período militar não contemplava transformações estruturais no ensino que favorecessem sua universalização e a melhoria de sua qualidade.

  1. Linhas Gerais da Educação na Constituição de 1988

A educação, na Constituição de 1988, é prevista, em primeiro lugar, como um direito social, no art. 6º, o qual dispõe:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Entre os arts. 205 e 214 estão distribuídos os dispositivos constitucionais da seção dedicada especialmente ao tema da educação. No quadro normativo constitucional de 1988, estabeleceram-se o direito à educação, contraposto ao dever do Estado, e mecanismos para fazer valer esse direito. A existência de princípios, em nível constitucional, que visem a conferir um substrato qualitativo ao direito à educação, acoplada aos mecanismos processuais de exigência de prestações educacionais do Estado, tem proporcionado avanços na educação que não seriam possíveis sob a vigência das constituições anteriores. Naturalmente, além da existência de tais dispositivos, é necessário que os direitos sejam exercidos e deem azo à interpretação e reinterpretação da Constituição, como veremos ulteriormente.

Os arts. 205, 206 e 214 da Constituição estabelecem:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;

VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

VII – garantia de padrão de qualidade.

VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.

IX – garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida.

Parágrafo único. A lei disporá sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais da educação básica e sobre a fixação de prazo para a elaboração ou adequação de seus planos de carreira, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:

I – erradicação do analfabetismo;

II – universalização do atendimento escolar;

III – melhoria da qualidade do ensino;

IV – formação para o trabalho;

V – promoção humanística, científica e tecnológica do País.

VI – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.

Conforme se nota a partir da leitura desses dispositivos, o constituinte de 1988 busca, por meio da educação, promover transformação social, diminuindo as desigualdades e tornando a sociedade mais justa. A ideia do constituinte que embasa tais dispositivos é que a transformação duradoura da sociedade depende do oferecimento de ensino público, gratuito e de boa qualidade[10].

De acordo com José Afonso da Silva, “(…) a norma assim explicitada – ‘a educação, direito de todos e dever do Estado e da família […] (arts. 205 e 227) -, significa que em primeiro lugar, que o Estado tem que aparelhar-se para fornecer, a todos, os serviços educacionais, isto é, oferecer ensino, de acordo com os princípios estatuídos na Constituição (art. 206); que ele tem que ampliar cada vez mais as possibilidades de que todos venham a exercer igualmente esse direito, e, em segundo lugar, que todas as normas da Constituição, sobre a educação e ensino, hão de ser interpretadas em função daquela declaração e no sentido de sua plena e efetiva realização[11].”

Do ponto de vista jurídico, toda a ação do Estado em matéria de educação deve se guiar, em primeiro lugar, pelas grandes diretrizes estabelecidas na Constituição. Ou seja, o Estado, por ação ou omissão, está constantemente sob o potencial escrutínio do filtro constitucional, que determina, entre outras diretrizes: (i) educação como direito de todos; (ii) dever do Estado e da família, com a colaboração da sociedade; (iii) pleno desenvolvimento da pessoa; (iv) preparo para o exercício da cidadania; (v) qualificação para o trabalho; (vi) princípio da igualdade de acesso e permanência na escola; (vii) princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; (viii) princípio do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; (ix) princípio da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; (x) princípio da valorização dos profissionais da educação escolar; (xi) gestão democrática do ensino público; (xii) princípio da garantia de qualidade; (xiii) progressiva universalização do ensino médio gratuito; (xiv) oferta de ensino noturno regular adequado às condições do educando.

Todas essas diretrizes – além de outras – possuem diferentes forças normativas para seus diversos destinatários e comportam aplicações de diferentes extensões em cada caso concreto. Por isso, não basta uma análise semântica do texto constitucional; é necessário, no nível da pragmática, examinar sua aplicação diante dos conflitos concretos que se apresentam diante dos órgãos constitucionais. Por isso, a seguir, exploraremos a aplicação da Constituição de 1988 no plano da decidibilidade dos conflitos em matéria de educação – naturalmente, de modo exemplificativo, uma vez que essa abordagem tópica é sempre limitada.

3.1. Uma abordagem no nível da decidibilidade

  • Ensino Domiciliar

Um dos conflitos jurídicos mais importantes na história recente do Brasil, em matéria de educação, levada até o Supremo Tribunal Federal, refere-se ao chamado ensino domiciliar (homeschooling), objeto do Recurso Extraordinário n. 888.815/RS.

Neste caso, questionava-se se haveria o direito de uma família de ministrar ensino a seus filhos exclusivamente em casa, sem matriculá-los em uma escola da rede pública ou privada de ensino.

A decisão sobre essa controvérsia exige uma ampla análise sobre o papel do Estado e da família na educação das crianças e adolescentes, bem como sobre o que é e para que serve a educação.

Para a totalidade dos ministros, independentemente da possibilidade jurídica do ensino domiciliar, a educação envolve a participação conjunta do Estado e da família, e esta não poderia afastar aquele do processo de aprendizado da criança, assim como o Estado não poderia afastar a família.

O Estado tem o dever de fiscalizar e garantir que o conteúdo da grade curricular nacional esteja sendo ensinado à criança. Nesse caso, o Estado não pode permitir (por ação ou omissão) que uma criança seja deixada completamente à mercê do não-ensino, mesmo que esta seja a decisão dos pais.

O plenário do Supremo Tribunal Federal, nesse caso, decidiu, por maioria, que não há um direito subjetivo ao ensino domiciliar (pelo menos por ora) e que há formas de ensino domiciliar que são, desde já, incompatíveis com a Constituição. Ou seja, reconheceu que há diversas formas de ensino domiciliar e que algumas são incompatíveis com a Constituição, enquanto outras podem vir a ser regulamentadas pelo legislador federal. A ementa do julgado possui o seguinte teor:

Ementa: CONSTITUCIONAL. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL RELACIONADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E À EFETIVIDADE DA CIDADANIA. DEVER SOLIDÁRIO DO ESTADO E DA FAMÍLIA NA PRESTAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL. NECESSIDADE DE LEI FORMAL, EDITADA PELO CONGRESSO NACIONAL, PARA REGULAMENTAR O ENSINO DOMICILIAR. RECURSO DESPROVIDO.

  1. A educação é um direito fundamental relacionado à dignidade da pessoa humana e à própria cidadania, pois exerce dupla função: de um lado, qualifica a comunidade como um todo, tornando-a esclarecida, politizada, desenvolvida (CIDADANIA); de outro, dignifica o indivíduo, verdadeiro titular desse direito subjetivo fundamental (DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA). No caso da educação básica obrigatória (CF, art. 208, I), os titulares desse direito indisponível à educação são as crianças e adolescentes em idade escolar.
  2. É dever da família, sociedade e Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, a educação. A Constituição Federal consagrou o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes com a dupla finalidade de defesa integral dos direitos das crianças e dos adolescentes e sua formação em cidadania, para que o Brasil possa vencer o grande desafio de uma educação melhor para as novas gerações, imprescindível para os países que se querem ver desenvolvidos.
  3. A Constituição Federal não veda de forma absoluta o ensino domiciliar, mas proíbe qualquer de suas espécies que não respeite o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes. São inconstitucionais, portanto, as espécies de unschooling radical (desescolarização radical), unschooling moderado (desescolarização moderada) e homeschooling puro, em qualquer de suas variações.
  4. O ensino domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno ou de sua família, porém não é vedada constitucionalmente sua criação por meio de lei federal, editada pelo Congresso Nacional, na modalidade “utilitarista” ou “por conveniência circunstancial”, desde que se cumpra a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e se respeite o dever solidário Família/Estado, o núcleo básico de matérias acadêmicas, a supervisão, avaliação e fiscalização pelo Poder Público; bem como as demais previsões impostas diretamente pelo texto constitucional, inclusive no tocante às finalidades e objetivos do ensino; em especial, evitar a evasão escolar e garantir a socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência familiar e comunitária (CF, art. 227).
  5. Recurso extraordinário desprovido, com a fixação da seguinte tese (TEMA 822): “Não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira”.

(realces e maiúsculas no original)

O voto que capitaneou a maioria do STF nesse caso foi o do Ministro Alexandre de Moares, que afirmava que o ensino domiciliar não é inconstitucional, porém, por não ser regulamentado, não poderia ser reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como objeto de um direito subjetivo, pois tal papel caberia ao Poder Legislativo federal. Existe, em seu voto, um importante argumento que defende que há um conjunto constitucional obrigatório (de princípios, preceitos e regras) sobre a educação que não pode ser suprimido ou limitado em qualquer forma de educação que seja ministrada.

Para o ministro Luiz Fux – divergindo parcialmente do voto condutor – o constituinte brasileiro deixou claro, ao longo do texto constitucional, que não seria aceitável qualquer outra forma de ensino que não aquelas já previstas na Constituição. O ministro dividiu seu voto em três partes para que pudesse defender sua tese.

Na primeira parte, tratou da interpretação literal do texto constitucional, explicando:

“A obrigatoriedade de os pais matricularem os filhos em idade escolar em instituições de ensino encontra amparo na literalidade do texto constitucional, desde 1934. Na Constituição vigente, a obrigatoriedade está expressa no artigo 208, § 3º, segundo o qual ‘Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola’ (…)”.

Para o ministro Fux, a Constituição exige a prática do ato de matrícula dos educandos – e essa obrigação seria incompatível com o ensino domiciliar.

Na segunda parte do seu voto, o ministro Fux assinalou que o ensino na rede regular ainda confere aos educandos a realização de outro direito: a partir da função socializadora da escola, é possível garantir o direito ao pertencimento, em nome do melhor interesse da criança. Escreveu o ministro Fux:

“A função socializadora da escola consiste em inserir a criança e o adolescente em um espaço público de convívio com outros menores em semelhante estágio de desenvolvimento psicossocial. Assim, a partir de conflitos existenciais semelhantes e do compartilhamento de experiências relacionais semelhantes, podem amadurecer juntos. O contato com o diferente e o aversivo também possui imensa relevância, mas se insere na dimensão política da tolerância, que será abordada no próximo tópico.”

E continua o ministro Fux em seu voto:

“A partir da frequência à escola, a criança encontra seu lugar no mundo, ao conviver com outras crianças, em um ambiente talhado para seu desenvolvimento. Dessa forma, sente-se acolhida por um ambiente em que, diferentemente do seio familiar, a estima é construída a partir de seus próprios atos. A importância desse acolhimento foi desenvolvida nas lições de Axel Honneth, por meio da Teoria do Reconhecimento, que analisa as relações sociais de reconhecimento e as consequências decorrentes de seu desrespeito.”

Em seu voto, o ministro Fux também afirmou que existe o dever da sociedade e do Estado de resguardar as crianças e os adolescentes de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, a partir da realização do princípio do melhor interesse da criança. Assinala, ainda, que a liberdade religiosa dos pais não pode ser alegada como para justificar eventual abuso de poder familiar.

O ministro Fux conclui a segunda parte do seu voto afirmando: “Quando se trata do melhor interesse da criança e da construção de uma sociedade livre, justa e plural, por mais razão ainda, a autonomia da vontade dos pais não pode se obstar à proposta progressista da Constituição. Ao restringir o alcance da liberdade dos pais, deve-se considerar o caráter relativo dessa liberdade, a vulnerabilidade do menor e a irreversibilidade dos danos eventualmente causados pelo isolamento. É por tais razões que se deve afastar o argumento de que haveria um paternalismo em impedir que o ensino domiciliar se substitua ao ensino escolar.”

Na terceira parte de seu voto, o ministro Fux abordou a questão do pluralismo de ideias. Ele afirmou que o acesso à educação é uma preocupação de natureza pública que atende, inclusive, a uma função política. Citando Savater, o ministro afirmou que “as sociedades democráticas educam em autodefesa, isto é, para se protegerem: se uma sociedade não cria cidadãos capazes de viver harmoniosamente, se não cria o tipo de cidadão capaz de participar de forma crítica e construtiva nas instituições, está condenado a não ser mais do que uma democracia de fachada ou nome, mas não uma democracia real, porque estes exigem democratas e os democratas não são plantas selvagens que nascem entre as pedras por acaso, mas algo que tem que ser cultivado socialmente pelos modos de educação”.

Há, assim, na argumentação do ministro Fux, uma conexão entre o mandamento do art. 3º da Constituição – que determina a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” – e o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (que deve orientar toda forma de ensino, ex vi do art. 206 do texto constitucional. No ensino exclusivamente doméstico, essa parte pública e política da educação ficaria negligenciada.

O ministro Fux ainda recorreu ao direito comparado para reforçar que, em sociedades democráticas, as crianças precisam atravessar um processo de educação que inclua a convivência com as diferenças. Nesse sentido, ele invoca o Guide on Article 2 of Protocol No. 1, sobre o direito à educação da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que prevê a importância do “pluralismo na educação, que é essencial para a preservação da ‘sociedade democrática’ conforme concebida pela Convenção”, com destaque para o seguinte trecho:

“[N]ão apenas a aquisição de conhecimento, mas também a integração e as primeiras experiências da sociedade são objetivos importantes na educação primária e que esses objetivos não podem ser alcançados, nem atendidos na mesma medida pela educação domiciliar, mesmo que permita que as crianças adquiram o mesmo padrão de conhecimento fornecido pela educação primária.

No mesmo caso, o Tribunal considerou ainda que está em conformidade com a sua própria jurisprudência, sobre a importância do pluralismo para a democracia, o raciocínio dos tribunais nacionais que salientava tanto o interesse geral da sociedade em evitar o surgimento de sociedades paralelas baseadas em convicções filosóficas separadas e a importância de integrar as minorias na sociedade. Por isso, rejeitou uma queixa relativa à recusa em permitir que os pais eduquem os seus filhos em casa como manifestamente infundada (Konrad e outros contra a Alemanha (dec.)”.

Outro voto com divergência parcial foi apresentado pelo ministro Ricardo Lewandowski, que também considerou o ensino domiciliar inconstitucional, defendendo suas conclusões pelo prisma do pensamento republicano que o ministro acredita ser o principal núcleo para a interpretação da Constituição.

De acordo com o ministro Lewandowski, os membros de uma República são titulares de direitos e de deveres para com a sociedade em que vivem. Esses deveres e direitos visam alcançar o bem comum daquela comunidade em que estão inseridos, e a partir disso, deve-se reconhecer o direito à educação como necessário ao preparo para a vida pública e para a cidadania.

Na argumentação do ministro Lewandowski, o conceito de cidadão é diferente do conceito de consumidor: o cidadão não pode escolher o que lhe agrada na República, e refutar os deveres que não lhe agradam. Da mesma forma, a República exige que a criança tenha acesso à educação nos termos da Constituição, não podendo a família limitar o acesso da criança ao mínimo educacional exigido pela Constituição em caráter obrigatório.

Em seu voto, o ministro Lewandowski também afirmou que, apesar de os pais possuírem direito à liberdade religiosa, a criança também o possui, e tal direito só poderia ser plenamente exercido, de fato, se a criança fosse exposta à diversidade.

Segundo o ministro Lewandowski, as deficiências do ensino escolar público ou privado no Brasil não justificam a retirada dos filhos da rede escolar, e, pelo princípio republicano, o dever seria o de exigir um ensino básico de qualidade a todas as famílias. E é a partir desse engajar-se na política, que é um dever que os pais devem observar e que deve ser ensinado nas escolas, que a democracia é capaz de florir. Os pais podem apresentar suas crenças e criticar aquilo que acreditam ser falhas no ensino ministrado nas escolas, mas não podem privar os filhos de terem acesso à experiência escolar.

Por fim, citando Cass Sunstein, o ministro Lewandowski afirma: “(…) como bem aponta Sunstein, embora a liberdade de escolha seja importante, o certo é que a liberdade consiste não apenas em satisfazer preferências, mas também na possibilidade de estabelecer crenças e preferências após exposição suficiente ao mais vasto e diversificado conhecimento possível. Não há garantia de liberdade na república dos consumidores, diz ele, mas apenas na dos cidadãos”.

O ministro Luís Roberto Barroso foi o relator do caso, deu provimento ao recurso e foi vencido pela maioria. Para ele, a prioridade deve ser dos pais quanto ao tipo de ensino que querem que seus filhos tenham. Segundo o ministro:

“Este artigo [artigo 227], que é o artigo em que se baseia toda a doutrina para extrair o princípio do melhor interesse da criança, sintomaticamente coloca a família na frente do Estado, no dever de prover educação”.

Quando confrontado com os artigos da Constituição que obrigam os pais a fazerem matrícula dos filhos, o ministro Barroso afirmou que tais regras se impõem apenas aos pais que optam pelo ensino regular.

O voto do ministro Barroso foi acompanhado pelo ministro Edson Fachin, que divergiu parcialmente alegando que o poder público teria a obrigação de, em até um ano, fazer uma proposta para regulamentar o ensino domiciliar.

  • Acesso à Internet e Educação

Um segundo caso em que o Supremo Tribunal Federal foi chamado a se manifestar em matéria de educação refere-se à obrigação da União de transferir aos estados e municípios recursos para custear o acesso à internet de alunos da rede pública em situação vulnerável para que pudessem assistir às aulas ministradas online, especialmente durante a pandemia.

O governo Federal, então sob a presidência de Jair Bolsonaro, ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade – autuada sob n. 6.926/DF – no Supremo Tribunal Federal contra a Lei n. 14.172, de 10 de junho de 2021, alegando que o diploma aprovado pelo Congresso era inconstitucional, pois violaria o devido processo legislativo, as condicionantes fiscais, o teto de gastos, as regras de custeio relacionadas a políticas públicas atinentes à educação, o princípio da eficiência e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

O colegiado do Supremo, capitaneado pelo voto do relator – o ministro Dias Toffoli – entendeu que a lei em questão é constitucional e a transferência de recursos nela contemplada seria fundamental para efetivar o direito à educação.

Para o ministro Dias Toffoli, é dever do Estado concretizar o direito social relativo à educação e desobstruir quaisquer barreiras para o pleno exercício de tal direito. Para ele, no mundo atual, especialmente naquele contexto de pandemia, o acesso à internet seria um pressuposto para a concretização do direito à educação, já que os alunos sem condições financeiras para acessar a internet foram privados do próprio acesso ao ensino (ainda que remoto).

Seguindo o princípio de igualdade de condições, seria necessário que o Estado provesse apoio aos alunos em condições vulneráveis para que eles pudessem exercer seu direito à educação de maneira adequada.

  1. A Perene Reinterpretação da Constituição

Os dois casos de jurisprudência acima lembrados – sobre ensino domiciliar e sobre o acesso à internet como pressuposto do exercício do direito à educação – mostram como a Constituição é interpretada e reinterpretada ao longo do tempo, tendo em vista as novas situações fáticas e novos conflitos que surgem no seio da sociedade. O constituinte de 1988, naturalmente, não imaginava que a internet (bem como as novas tecnologias, de modo geral) seria necessária para o exercício do direito à educação ou mesmo que surgiria uma demanda social para que certas famílias ministrassem ensino a seus filhos domesticamente. Mas o Poder Judiciário, guiado pela Constituição (tal qual emendada de tempos em tempos), é instado a tomar decisões que, pelo menos temporariamente, promovam pacificação social e estabilizem as expectativas na sociedade.

Um observador externo notará que a interpretação constitucional do Poder Judiciário, assim como de todos os demais participantes da sociedade aberta de juristas intérpretes da Constituição, varia ao longo do tempo, ainda que o texto constitucional não seja alterado. Esse processo de transformação recebe o nome de mutação constitucional, “um mecanismo que permite a transformação do sentido e do alcance das normas da Constituição, sem que se opere, no entanto, qualquer modificação do seu texto”[12].

A mutação constitucional pode parecer a muitos um fator de insegurança, uma vez que o intérprete tomaria uma decisão com base em certo sentido da norma jurídica que não aparece explicitamente no texto constitucional e configura uma inovação em relação aos significados até então registrados de uma norma ou um conjunto de normas.

Entretanto, tradicionalmente, os processos de mutação constitucional não costumam representar rupturas inesperadas ou injustificadas. O desenvolvimento da interpretação constitucional costuma lançar raízes no texto constitucional e explorar suas potencialidades de modo orgânico, considerando-se a evolução da cultura jurídica, da realidade fática subjacente e da escala axiológica que acompanha o intérprete. Daí se comparar o processo de desenvolvimento da interpretação normativa ao crescimento de uma planta – no dizer de Reale, ao invés de se fixar na ilusória certeza e previsibilidade de um texto normativo estático, o intérprete deve extrair novos sentidos da norma (i.e., do dever-se) a partir da experiência: “não se trata de preservar uma certeza normativa formal e estática, mas sim uma certeza normativa tal como, sem solução de continuidade, vai sendo configurada ao longo da experiência, extraindo-se da norma todas as suas virtualidades, assim como a planta é o desenvolvimento das potencialidades da semente”[13].

O desenvolvimento da interpretação constitucional, nesses termos, porque apoiado em topói, em argumentos bem sedimentos na cultura jurídica, com aderência às transformações sociais e às preferências axiológicas de cada tempo, ainda que promova mutação nos sentidos da Constituição, não deverá causar surpresas ou sobressaltos a um observador atento da comunidade aberta de intérpretes.

  1. Conclusão

Neste ensaio – pequeno para a amplitude do tema –, buscamos apresentar de modo sucinto algumas ideias essenciais sobre a colocação do tema da educação no plano constitucional do ordenamento jurídico brasileiro.

Buscamos mostrar, em primeiro lugar, a autocontenção das Constituições brasileiras, até 1988, em promover transformações estruturais na educação da sociedade brasileira. Apontamos, com alguns excertos exemplificativos, mas bem representativos, que as críticas à educação no Brasil e ao tratamento constitucional da educação são antigas (como os discursos de Ruy Barbosa denunciam). Essas críticas e insatisfações históricas são cruciais para se compreenderem as inovações introduzidas pelo constituinte de 1988 e a interpretação que se foi dando ao texto constitucional desde 1988.

Com uma abordagem no nível da pragmática, buscamos indicar a plasticidade do texto constitucional e a necessidade de sua constante atualização pela via da interpretação, em vista de novos fatos e novos conflitos que se apresentam à comunidade aberta de intérpretes da Constituição.

Compreender as diretrizes da Constituição sobre a educação – e como essas diretrizes estão sendo interpretadas – é fundamental para o entendimento do sistema da educação na sociedade brasileira. No edifício normativo, a Constituição localiza-se no nível mais elevado; as demais normas – infraconstitucionais – devem ser interpretadas conforme a Constituição, e não o contrário (não é a interpretação constitucional que deve se flexibilizar em favor de normas infraconstitucionais).

Essa atualização da interpretação constitucional não cessará e exige que os intérpretes da Constituição – e, no que importa para este ensaio, os participantes do debate público da educação no Brasil – se mantenham engajados na construção de novos sentidos, mais atuais e que promovam com mais eficácia a realização do direito à educação, pelo tempo em que se conseguirem extrair novas potencialidades das sementes do texto constitucional.

 

[1] Ruy Barbosa, Obras Completas, vol X, tomo I, “Reforma do Ensino Primário e Várias Instituições Complementares da Instrução Pública”, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1947, p. 08-09.

[2] Ruy Barbosa, Obras Completas, vol X, tomo I, “Reforma do Ensino Primário e Várias Instituições Complementares da Instrução Pública”, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1947, p. 143.

[3] Ruy Barbosa, Obras Completas, vol. X, tomo I, “Reforma do Ensino Primário e Várias Instituições Complementares da Instrução Pública”, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1947, p. 89; 93; 95. Prossegue Ruy Barbosa na mesma toada:

“(…) Ao nosso ver a chave misteriosa das desgraças que nos afligem, é esta, e só esta: a ignorância popular, mãe da servilidade e da miséria. Eis a grande ameaça contra a existência constitucional e livre da nação; eis o formidável inimigo, o inimigo intestino, que se asila nas entranhas do país. Para o vencer, releva instaurarmos o grande serviço da “defesa nacional contra a ignorância”, serviço a cuja frente incumbe ao parlamento a missão de colocar-se, impondo intransigentemente à tibieza dos nossos governos o cumprimento do seu supremo dever para com a pátria (…)” (p. 121-122). Ruy Barbosa, nesse sentido, prudentemente, já alertava para os riscos que as deficiências educacionais podem causar à própria “existência constitucional” do Estado.

[4] F. C. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição da República dos E.U. do Brasil, tomo II, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1937, p. 386, 387, 396.

[5] Não se pode deixar de consignar que o quadro de referências filosóficas e humanistas em que o tema da educação se colocava no contexto da Constituição de 1934 era bem diverso do atual. A educação, em sentido amplo, na Constituição de 1934, era tendencialmente eugênica, como se depreende do art. 138, b):

Art 138 – Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas:

(…)

  1. b) estimular a educação eugênica;

(…)

A ideia de uma educação eugênica fazia parte desse conceito amplo de educação (ou formação humana) imaginada pela Governo e que era expressamente verbalizada por Getúlio Vargas. Em discurso de 15 de novembro de 1933, dirigido à Assembleia Nacional Constituinte, Vargas afirmou:

“Todas as grandes nações, assim merecidamente consideradas, atingiram nível superior de progresso, pela educação do povo. Refiro-me á educação, no significado amplo e social do vocábulo: física e moral, eugenica e cívica, industrial e agrícola, tendo, por base, a instrução primaria de letras e a técnica e profissional” (disponível em <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/getulio-vargas/discursos/1933/09.9.pdf/view> , acessado em 10 de fevereiro de 2023).

[6] F. C. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, tomo VI, Rio de Janeiro, Borsoi, 1960, p. 210.

[7] F. C. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, tomo VI, Rio de Janeiro, Borsoi, 1960, p. 214.

[8] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição Brasileira, 6.ed., rev. e atualizada, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 703.

[9] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição Brasileira, 6.ed., rev. e atualizada, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 709

[10] Virgílio Afonso da Silva, Direito Constitucional Brasileiro, São Paulo, EDUSP, 2021, p.262.

[11] José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 39.ed., São Paulo, Malheiros, 2016, p. 317.

[12] L. R. Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 9.ed., São Paulo, Saraiva, 2020, p.142. Em sentido similar, Bruce Ackerman, “The living Constitution”, in Harvard Law Review, 2007, p. 1741-1742.

[13] M. Reale, “A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli”, in Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, n. 74, p. 195-210.

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